A Descoberta da Amizade

Guilherme Mattoso
7 min readFeb 27, 2023

“Amigos nas nossas vidas são como garçons, sempre passam, porém alguns demoram mais do que outros”, Gordie, do filme Conta Comigo

Direto de 1992… Guns n’ Roses mirim (eu sou o da garrafinha de saquê e bandana USA)

Num já longínquo ano de 1989, no século passado, minha família mudou-se para um prédio novinho em folha, no bairro de São Domingos, em Niterói. Aportar num condomínio recém inaugurado faz toda uma diferença para as relações de amizades que se iniciam. Não era um prédio antigo com uma turma já formada, unida… e eu o novato recém chegado. No meu prédio, todo mundo era morador novo, ou seja, a minha turma começou do zero.

Acho que este é um fator que contribuiu muito para o que eu e meus vizinhos construímos. Mantenho contato frequente com alguns até hoje e lá se vão mais de 30 anos de amizade. Bruno, Marcela do 11, Salomão, Thiago, Diogo, Danilo, Cesar, Janaina, Leo, Baixinho, Bernardo, Gabriela, Marcela do 6, Flavia, Isabela, Tadeu, Gugu, Velho, Marcos, Michele… e me perdoem se faltou alguém. Este texto é sobre vocês.

E cabe aqui, sim, esse clichê. Uma citação de This used to be my playground, da Madonna:

This used to be my playground (ah used to be). This used to be my childhood dream. This used to be the place I ran to. Whenever I was in need of a friend
Why did it have to end? And why do they always say? No regrets…

Numa primeira vista, meu play era um lugar duro, frio, não tinha um brinquedo sequer, apenas uma sobreposição de tons de cinza, pilastras e nada mais. Não tinha piscina, quadra, brinquedoteca, academia… nada. Mas o céu dava cor, especialmente no verão quando estávamos de férias e os raios de sol explodiam no fim de tarde.

Essa frieza, porém, estava só na estrutura. Aquele playground tinha vida. Foi o nosso reino, nossa Neverland, Elo Perdido, Eldorado… aquele espaço era nosso e fazíamos dele tudo o que era possível: campo de futebol, basquete, vôlei, bmx, hóquei, futebol americano, skate, patins, cenário de polícia e ladrão, pique-esconde, festival de rock…

No início, ainda moleques, nos dividíamos entre meninos e meninas, não brincávamos juntos, mas crescemos e viramos uma galera só. Vieram os primeiros beijos, festas americanas, dancinhas e mais liga ainda para reforçar a amizade que se consolidava no dia a dia de um jeito muito natural.

Na adolescência, viramos melhores amigos. Havia espontaneidade, sinceridade, confiança e ainda uma certa pureza. Havia entre aqueles muros uma sensação de liberdade tão grande, parecia que pairava no ar um sentimento de que poderíamos viver o presente sem medo, como se não houvesse o futuro.

E por um momento, eu tive a sensação de que aquilo duraria para sempre. Confesso, eu desejei muito conviver com aqueles amigos para o resto da vida.

O play não era só um espaço de esportes, brincadeiras, namoros e festinhas. Também tivemos a nossa fase rebeldes sem causa. Pixamos paredes, fizemos estalactites de cuspe no teto, quebramos gesso, experimentamos bebidas alcóolicas, os primeiros cigarros, fizemos guerra de porrolho (bola de papel higiênico molhado)… a lista de vandalismo gratuito é longa.

Rolavam brigas também, ficávamos um tempo sem nos falar, mas nunca houve ruptura, quebra de confiança. Rolava muita zoação e o que poderíamos chamar de soft-bullying, que respeitava o bom senso e mantinha o espírito de lealdade entre a turma. Trocando em miúdos, ninguém pegava pesado e todo mundo sabia a hora de parar.

E aí de alguém, que viesse de fora, querer se meter com um de nós! As diferenças evaporavam e nos uníamos contra o inimigo comum. “Eu POSSO zoar ele de nerd! Você, de fora da galera, nem levante os olhos para o meu amigo”.

Hoje, consigo perceber que haviam dois elementos que uniam e fortaleciam a turma: a música e o futebol. Fomos a primeira geração impactada pela chegada da MTV Brasil, ouvíamos a Maldita Flu FM, devorávamos a revista Bizz, as Letras Traduzidas e, claro, as revistinhas de violão… todo mundo se apaixonou por música, em especial pelo rock. Todo mundo aprendeu um instrumento. Fomos aos primeiros shows juntos, como a lendária apresentação do Guns no Autódromo de Jacarepaguá ou o show em homenagem ao Jorge Ben na Concha Acústica.

O futebol também. Tínhamos diversidade de torcedores, com vascaínos, tricolores, flamenguistas e até botafoguenses (!) convivendo em paz, mas o que exaltava os ânimos mesmo era a rivalidade entre Demoliton Mortal e o The Rest. Foram os dois times que criamos para as peladas no play. A escalação era sempre a mesma, nunca variávamos os jogadores. A união entre os dois rivais só acontecia quando formávamos a seleção do prédio para jogos contra os condomínios vizinhos. Tivemos até uniformes e o síndico como técnico!

Anos depois, já adulto, lembro do playground entrar em obra. Quebraram o piso inteiro e fiz questão de descer para coletar um pedaço do cimento com a marcação da quadra que nós mesmo pintamos. Guardei um pedaço e um outro dei de presente para o Bruno, que morava nos EUA. Preciso encontrar este artefato! Daria uma bela peça, literalmente concretista, enfeitando a minha sala, hehehe.

Naquela época, o tempo passava devagar. Deliciosamente devagar. Lembro de termos vários momentos de ócio, de tédio, não ter o que fazer… todas as brincadeiras possíveis tinham se esgotado. Hoje, mal posso lembrar como é sentir tédio, mas naquele play, nós poderíamos passar horas conversando, observando as nuvens ou o pôr do sol por entre as grades. Ou simplesmente assistir as folhas secas da velha amendoeira planarem pelo ar até pousar no chão.

Horas e horas jogando pingue-pongue e conversando na de fora. Horas e mais horas tocando violão no quarto e assistindo MTV. Mais e mais horas desenhando nossos shows imaginários, criando os escudos dos nossos times de futebol. Horas infinitas simplesmente vendo o tempo passar, ouvindo o eterno assoviar do vento incessante que atravessa Gragoatá, São Domingos e Boa Viagem, indo direto para as nossas janelas.

A vida também acontecia fora daqueles muros e, conforme crescemos, ganhamos a confiança dos pais para sair sozinhos. O Plaza Shopping, pertinho de casa, era quase um segundo playground. A Concha Acústica também. Tínhamos o privilégio de ir para a praia de Icaraí andando e, claro, passamos pela fase vôlei de praia. Quando pequenos, não podíamos ir ao Barroquinho e chegamos a ser barrados na Scaffo, que era uma matinê! Mais velhos, começamos a sair de noite. A Cantareira era quase uma continuação do prédio. Também encaramos longas viagens de 46 para assistir os shows de rock no saudoso Gato Preto, em Piratininga.

Aliás, foi nessa época que, aos poucos, deixamos de ser plateia para estar nos palcos do underground niteroiense. Já falei que todo mundo sabia tocar um instrumento, né? Pois bem, montamos bandas e daquele prédio saíram muitas que habitaram o circuito local de shows: Sioux, Atomic Heads, Carabina de Ambrósio, Biotech, Tribbus, Merchanside, Abaixo de Zero… tivemos a proeza de organizar o nosso próprio festival, o JJN Fest, com duas edições realizadas no lendário Bedrock, em Charitas!

Então, eis que, lentamente, uma diáspora foi acontecendo. Vieram as primeiras mudanças. Uns indo para outros bairros, outros para outros estados e até mesmo países. Nesse meio tempo, teve gente nova chegando e sendo acolhida e uma transição bem orgânica foi acontecendo, mas aos pouco deixamos de ser adolescentes. Começou a época da faculdade, passamos a nos ver menos, mesmo nos eventos ou pela noite da cidade. E o play foi ficando vazio. Os jovens adultos deixaram a casa dos pais. Silêncio.

Com os que se mudaram para perto foi mais fácil manter contato. Chegamos a frequentar os mesmos lugares e ter novos círculos de amigos em comum. Para os que foram para longe, com alguns mantive contato com cartas! Sim, cartas de papel, enviadas pelo correio! Mas foi difícil manter a troca em longo prazo.

O tempo foi esfriando as relações que só não acabaram, como aconteciam na época dos nossos pais (“depois do ensino médio, nunca mais vi fulano”), graças ao advento da internet e as redes sociais que ajudaram e muito a continuarmos conectados, mesmo que só de longe, acompanhando como telespectadores as vidas daqueles que costumávamos dividir sonhos.

O fim da infância e início da adolescência costuma ser uma época conturbada e confusa. Nesses anos em que deixamos os brinquedos de lado e perdemos a inocência, também descobrimos o valor de amizades verdadeiras e a importância dos pequenos momentos que podem nos marcar para o resto da vida.

Ter atravessado essa fase ao lado de grandes amigos como os que eu fiz foi muito importante. Mesmo! Felizmente, passei a adolescência em um ambiente de relações seguras, de lealdade, crescimento pessoal, respeito, confiança e, claro, de muita zoeira.

Tínhamos uns aos outros e isso bastava.

Lembro que, com uns 12 anos, assisti pela primeira vez Conta Comigo. Uma obra-prima baseada em um conto de Stephen King que retrata a vida de um grupo de amigos no início da adolescência. Como eu chorei ao final. Percebi que tudo aquilo que eu vinha experimentando com a minha turma estava, de certo modo, sendo narrado com uma sensibilidade absurda em um filme tão bonito e emocionante. E que este momento da minha vida, muito provavelmente, não duraria para sempre.

“Eu nunca mais tive amigos como os que eu tive quando tinha 12 anos. Meu Deus, e alguém tem?”, Gordie, do filme Conta Comigo.

Hoje, poucos são os amigos com quem ainda mantenho contato regular. Ironicamente, Bruno e Salomão, que moram mais longe, na Europa, são dois exemplos. E Diogo também, que segue morando em Niterói. No prédio em frente ao nosso, aliás.

Amigos, gostaria de terminar afirmando que sozinho teria sido muito mais difícil. Poderia ser em outro prédio, outros amigos, outras vivências… mas foi com vocês. Sim, isso mesmo. Sem vocês, eu não seria quem eu sou hoje. Cada um citado lá no início, de alguma forma, têm uma contribuição na minha formação pessoal. Este texto é um agradecimento. Cheguei até aqui para, simplesmente, agradecer. Muito obrigado! Amo vocês, fiquem com Deus!

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